domingo, 7 de maio de 2017

Derrames




Esta noite reservou-me uma experiência inolvidável, não porque tenha acontecido algo espantoso ou memorável e muito menos pela originalidade da situação. Mas foi o simples facto de estar ciente de que nunca antes o fizera, que me levou a sorrir interiormente perante o cliché da situação: a sensação forte de estar a bisar cenas cinematográficas e o quão ridículo de toda a representação. 

Cada vez mais, adoro rir de mim mesmo e divertir-me, inclusive com os pequenos ridículos que me integram; descobrir as minhas mais do que demasiadas imperfeições e trazê-las à luz quente do dia, cumprimentando-as com elegância e deferência, como se pelo simples facto delas existirem nenhum mal pudesse daí advir. 

As minhas metas de vida, no presente, são mais modestas, mas seguramente mais precisas e próximas da realidade possível. Já que a maior parte do nosso sofrimento advém da frustração de expetativas que criámos, com vista ao alcance de determinados objetivos que, posteriormente, se revelaram impossíveis de ser atingidos, há que abandonar a inflexibilidade como matriz e encarar, de uma vez por todas, a necessidade de ter um plano B ou C, fazendo da regeneração e da mutação fontes inesgotáveis de energia vital – possuir uma espécie de exército de reserva, apto a entrar em ação se as contingências assim o exigirem.

Muito a propósito, recordo Alberto Morávia, um dos romancistas que mais doirou o meu alvorecer como leitor e em especial um dos seus mais emblemáticos romances: "Le Ambizione Sbagliati".

Sempre me senti fascinado pela densidade psicológica dos personagens moravianos, num conflito latente, transversal com a mesquinhez, a ambição desmedida, o sarcasmo e tudo o que de mais sórdido há na natureza humana.

Também se cresce com as leituras, embora hoje seja para mim evidente que a experiência pessoal, mais do que a livresca, é a grande mestra. Desde que aprendi quão salutar é aceitar-me com as minhas enormes limitações, confesso, atirei às sortes do vento mais de metade das minhas misérias, vergonhas e complexos e já não vivo, nem quero mais, no limbo de desejos insanos que estou ciente não os poder materializar. Hoje sei, de fonte segura, pela lucidez que jorra, cada vez mais forte da torneira da minha experiência, que, pior que tudo, uma vez alcançados os objetivos a que nos propusemos, guindados pelas fasquias elevadas da nossa refinada vontade, não tarda, tudo se reinicia e a insaciedade reapodera-se de nós. Porque não determo-nos um pouco para "jogarmos" com os brinquedos que já possuímos, explorando-lhes as capacidades e aproveitando ao máximo as áreas mais soalheiras do quintal da nossa vida? O contentamento por vezes reside em coisas tão singelas, tão ao nosso alcance, que gastamos energias preciosas na busca incessante de "outras coisas", quando afinal temos bem pertinho de nós tudo quanto precisamos. Apenas carecemos dar mais valor e atenção ao que nos rodeia, porque a vida é efémera, porque o dom de ser nela participante é um bónus diário que nos é ofertado.

A experiência inolvidável que acima referi e que acabou por ficar por explicar, pois, uma vez mais, perdi-me na impudente tarefa de me arvorar o Deão da minha própria alma e enveredar por pensamentos sem regresso possível, não representa afinal nada de especial. Estava eu querendo dizer que levei o meu note book para cama – confesso que não foi muito difícil convencê-lo, pois acho, inclusive, que os computadores portáteis foram, de algum modo, concebidos para este tipo de licenciosidades –, abri-o sobre o cobertor mais grosso que me protege, o celebérrimo "Sogno Allegro" 200x240, 90% algodão - um agasalho transalpino que tem por logótipo um cartoon representando um casal com um ar demasiado intra-uterino, simultaneamente ensonado e feliz, trajando um pijama verde alface, chinelos no mesmo tom, a fazer pose frente a uma luazinha amarela em quarto minguante - e, umas vezes deitado de lado, outras de costas, com o computador sobre os joelhos; depois, já sentado na cama, apenas com dois almofadões a aliviarem-me as costas, lá consegui escrevinhar algumas coisas.

Já não sinto a atroz bigorna de uma tonelada e meia sobre a cabeça. Estou aqui para durar – e que seja a duração a escolher o tempo e o modo - mais intensamente do que muita gente que já se finou e ainda vagueia por aí como espetros ou representações do nada - quiçá não terão recebido a guia de marcha para outras paragens, mais aparentadas com o cinzentismo e conformismo biológico com que encaram a dádiva que é a vida.

Leiria - 2014

Sem comentários:

Enviar um comentário