sábado, 13 de maio de 2017

O apanágio do escrevente sobrevivo




Durante imenso tempo ficou incapaz de escrever uma linha que fosse. Começava a escrevinhar e logo parava. Tentou pensar em algo que lhe desse prazer contar, resolver-se por um tema que o aliciasse, agarrar uma trivialidade do quotidiano, um mexerico que fosse, e explorá-lo como se tratasse de um filão inesgotável, mas parecia não haver nada que lhe despertasse a vontade de acender um texto. Sentia, com uma intensidade nunca antes experimentada, o horror da lauda em branco e as ideias não lhe fluíam. Eram mais as frases que apagava do que aquelas que conseguia manter; e, mesmo essas, não duravam muito, pois começava a modificá-las a tal ponto que acabava também por as erradicar, sem que chegassem a ser luz duradoura com consistência suficiente para alumiar um escrito.

Via-se como o pianista que se lhe entorpeceram os dedos e já não consegue fazer soar notas nas teclas, teimando deitar culpas ao piano que não presta, ao assento que é desconfortável, a um ruído exterior que lhe abala a concentração. Então, abandonava-se durante minutos, que lhe pareciam laivos de eternidade, vagueando o olhar no ecrã em branco, até que a luminosidade sem matizes lhe fazia perder as forças para continuar.

Depois, apagava tudo o que luzisse em seu redor, despia-se, metia-se na cama, envolto num cordame de lençóis de sonhos, e tentava dormir embalado por músicas que escolhia por soltarem halos de inocência e serenidade.

A tristeza surgia-lhe logo pela manhã, pontual, incontornável. A princípio era uma coisa tímida, sorrateira, ensonada, mas de seguida, já mais afoita, entrava com à vontade e pujança triunfal nas caves da sua alma, agora exausta por excesso de vacuidades. Escrever em público sobre o sofrimento que o assolava afigurava-se-lhe um pecado de exibicionismo moral e hesitava entre fazê-lo ou quedar-se para sempre no silêncio.

Pensou mudar de vida, dedicar-se à especulação imobiliária, ao comércio de antiguidades, ao negócio livreiro; enfim, a qualquer coisa que servisse para o convencer de que o néctar da sua imaginação se tinha esgotado. Porém, não consegui e voltou a escrever. E desta vez escreveu sobre a lua, personificação de muitos dos seus caprichos, astro que amiúde o olhava através da janela, depois de descer sem ruído da escadaria de nuvens e sussurrava-lhe: «Gosto de ti, criança!»

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