sexta-feira, 12 de maio de 2017

Hélio Isidoro Catalão Marofas




Chamo-me Hélio Isidoro Cassiano Marofas. Nunca gostei do meu nome. Quando me perguntam o que faço na vida nunca sei ao certo o que responder. Sou fazedor de códigos. Tirei uma licenciatura em jurisprudência há mais de trinta anos e, passados que foram mais de vinte anos de ensino público, dediquei-me a esta tarefa inglória. Atualmente é com isto que governo a minha vida: compilo legislação, recolho leis avulsas, reúno coletâneas, plagio códigos e limito-me a oferendar-lhes um preâmbulo cujo título começa invariavelmente pelas mesmas palavras: nota do autor. O autor não pode ser a minha pessoa, como é evidente; e é aqui que começa a desonestidade inteletual e a trama da culpabilidade que se desenrola dentro de mim.

Arrogo-me autor de leis arquitetadas por juristas cujas identidades se perdem no tempo, diplomas que foram mais tarde modificados por outros; gentes que labutam no anonimato nos gabinetes esconsos dos ministérios e cujos nomes nunca vêm à ribalta. Tenho a ousadia de fazer editar códigos jurídicos com o meu nome impresso na capa, como se tratassem de realizações saídas da imaginação e labor de um autor de prosas. Sirvo-me indecentemente dos meus estafados pergaminhos académicos e das influências que granjeei junto das editoras da especialidade, para juntar umas patacoadas, a título de intróito, e dar a uma coletânea legislativa o privilégio de me ter como seu pretenso progenitor.

Os meus colegas dizem-me para não me sentir assim. Dizem eles que até um código carece de alguma humanidade e é um beneficio que se concede à aridez das regulas dar-lhes um nome, uma paternidade. Ganho bastante dinheiro com este mecanismo fraudulento e sei de antemão que é o meu nome que vende e não a qualidade da falácia do meu trabalho – que nem existe!

Moro só e tenho caspa abundante no cabelo. Já fiz sessenta e dois anos e não tenho mulher, filhos, nem pretendentes a uma coisa ou outra. Sou aquilo que se pode chamar um homem desinteressante, credenciado pela mediocridade institucional de uma escola de propaladores de doutrinas alheias. Aprendi, como todos, a arte e o engenho da reformulação, a dar a entender que aquilo que escrevo é algo original e não a redundância clássica do lente universitário que precisa inaugurar uma escola para sobreviver como tal.

Atualmente estou de férias na Patagónia, planejando mentalmente um homicídio, ou talvez isso seja só um desejo insano que nunca terá concretização. Nem sempre o corpo docente de uma Universidade se anima de boas intenções. São conhecidas as rivalidades, os extremos da maledicência, a teia da intriga em que se desenvolvem e encontram-se aí exemplos de baixeza sem par, mantidos sotto voce, felizmente ignorados pelos discentes e pela gente em geral. No entanto, os casos em que se resolvem por homicídio são, quero acreditar nisso, bastante raros, constituindo uma exceção. Não gostava de ficar conhecido como o professor assassino mas, por outro lado, o que tenho eu a perder?

Um colega mais novo, cheio de mestrados e doutoramentos obtidos em universidades americanas, anda a arruinar-me o negócio próspero das edições. Será que ele não se apercebe que nestas coisas há monopólios, uma primazia tácita dos mais velhos face aos que ainda não chegaram às luzes da ribalta e à maturidade de um final de carreira?

A vingança não é uma modalidade criminosa simples. É muito subjetiva. Fundamental na vingança é que o objeto do ódio tenha a perspicácia de dar por ela. Se cremos que nos vingámos e o outro prossegue na sua vida bonaçoso, indiferente, então não nos vingámos. Isto implica um conhecimento profundo do sujeito de quem pretendemos vingar-nos. Mas o que é o nosso conhecimento do outro senão um caos de interpretações, de pressupostos, de hipóteses, de mal-entendidos, pousados eles mesmos sobre uma série de omissões, máscaras, de silêncios, de vazios? É um estranho conhecimento, uma quase ignorância. Não é o medo da retaliação que me impede de me vingar dele. É antes este aspeto contingente.

Quando regressar destas férias auscultarei a minha real vontade. Para já, faltam quinze minutos para a meia-noite e não quero perder por nada deste mundo a abertura dos Jogos Pan-Americanos. Já pedi que me trouxessem uma garrafa de rum cá acima ao quarto. O reclamo luminoso do hotel está quase a fundir-se e receio que não passe desta noite. Agradeço à divina providência que tal suceda, pois já não suporto mais a intermitência do néon abusando da paz interior do meu quarto noite dentro.*





* Buenos Aires - ficção escrita em 2006


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