sábado, 2 de abril de 2011

Entre crónicas

E foi mais um sábado chuvoso, monocromático, sem graça, como se a Primavera teimasse em só existir nos dias úteis, em que estamos mergulhados em tarefas ligadas ao trabalho, e esperasse pelo fim-de-semana para nos estragar eventuais planos de actividades ao ar livre. Sem coragem para me afastar muito de casa, não fosse a intempérie tornar o meu giro demasiado desagradável, fui na parte da manhã até à catedral do consumo de Leiria, mais propriamente às lojas da Fnac e da Bertrand, onde sou consumidor habitual. Como é uso e costume nestes dias cinzentos e pardos, o fórum estava apinhado de gente, passeando o olhar pelas montras, sem nada comprar, reservando os euros para gastar na zona da restauração, àquela hora matinal, repleta dos adeptos do pastel de nata e da bola de berlim, a acompanhar o vital café. Aditivado há muitos anos na leitura e já com sintomas de abstinência motivados pela carência de novos livros, coscuvilhei de alto a baixo as novidades literárias, com enfoque na literatura portuguesa, a que mais me interessa, e lá acabei por comprar três livros que, penso, me vão deliciar. São eles, a última obra de José Eduardo Agualusa, 'O Lugar do Morto', uma psicografia sobre 24 escritores já falecidos, revelando as suas opiniões sobre assuntos importantes, ou não tão importantes, do nosso quotidiano - uma espécie de vozes do além sobre situações da actualidade. De Nuno Júdice, comprei 'O Complexo de Sagitário', uma homenagem peculiar à obra do Marquês de Sade, com ênfase na célebre 'Filosofia da Alcova', num cativante diálogo entre o ensaio e o poético, usando os mesmos jogos de linguagem que Sade popularizou. Finalmente, aquela que penso ter sido a melhor escolha, já o comecei a devorar com sofreguidão!, o livro de Alexandre O'Neill, 'Já cá não está quem falou', numa reedição da Assírio e Alvim, esgotada há algum tempo em quase todas as livrarias. Trata-se de um conjunto de textos originalíssimos, com o timbre inconfundível de O'Neill, em que o saudoso poeta, ao mesmo tempo que disserta sobre a poesia de outros poetas, tais como Manuel Bandeira, Teixeira de Pascoais e Mário Cesariny, revela-nos a sua prosa corrosiva, pejada de um fino humor sarcástico, através de crónicas, ensaios e entrevistas, simuladas ou não. 

Com algum dinheiro gasto e os livros dentro dos saquinhos de plástico minúsculos da Fnac e da Bertrand, dirigi-me à 'Sinfonia', na zona da Barosa, a mais recente loja de instrumentos musicais de Leiria, onde se podem comprar as guitarras, as baterias, os saxofones, os sintetizadores, os órgãos e os pianos mais caros do mercado. Arvorado em potencial comprador de guitarras, experimentei uma Takamine e uma Gibson Les Paul, ambas com preços a rondar os 2000 euros, e, mal-grado ainda ser um músico de implante, que nem calos decentes consolidou nas falanges, consegui sentir a diferença abissal em peso, brilho sonoro e qualidade de construção destas guitarras em relação à minha Daytona de 200 euros. Qualquer uma das guitarras que experimentei, são consideradas Ferraris no panorama dos instrumentos musicais, e apenas são usadas por virtuosos, com óbvio poder de compra. Disse-me o vendedor, que o Rui Veloso, que conhece pessoalmente, colecciona guitarras de todos os géneros e possui mais de 200 exemplares, muitas delas Gibsons topo de gama com a assinatura de músicos famosos. Fiquei a saber outra coisa referente ao meio musical. As marcas de maior prestigio, produzem modelos com nomes de guitarristas famosos e custam consideravelmente mais dinheiro. Por exemplo: uma Gibson semi-acústica, que normalmente custa na casa dos 2000 euros, se tiver a assinatura do BB King, pode facilmente atingir os 3000 euros.  Trata-se da mesma guitarra só que é uma Gibson Les Paul BB King. Lembrei-me logo dos blusões Dainese para motards que, só por terem escrito em letras garrafais o nome Rossi, o rei da velocidade, podem custar consideravelmente mais - Os totós dos motards pagam mais pelo blusão e ainda fazem publicidade gratuita ao enfant terrible do circuito de Jerez de La Frontera.

Como é típico de todos os tesos de enxerto, agradeci os 'test ride' e disse que ia 'pensar no assunto'. O vendedor, de uma simpatia inexcedível, disse-me que, ainda que não comprasse nada, estava à vontade para, sempre que quisesse, ir à loja para experimentar quaisquer guitarras - conheço este género de marketing e esta simpatia insidiosa que, quase sempre, mais cedo ou mais tarde, leva o potencial comprador a sucumbir à tentação da aquisição. O marketing, inventado pelos norte-americanos, já tem a maturação de muitos anos de estudos e estratégias, onde quase sempre os especialistas do comportamento humano dão uma mãozinha. Já conheço, pois, esta matreirice do mundo das motas, dos test drives, onde a inoculação do veneno, o 'bichinho', faz-se através deste tipo de atitudes. A adrelina que se segue, leva-nos, quase sem reflectir, a assinar quaisquer créditos, a fim de possuir o objecto do desejo. Para má sorte deles, vendedores, cultivei uma forte capacidade de resistência às tentações consumistas, que quase sempre potenciam ruínas económicas. Vou curtindo os 'test drives' de Gibsons e BMWs topo de gama, ficando-me pela água na boca e deixando-os obviamente frustrados, até ao dia que correrem comigo das lojas..

O momento peculiar do dia, que me fez regressar mais cedo a casa, aconteceu num restaurante onde sou relativamente assíduo. Tendo escolhido a ementa para a refeição, agarrei no 'Correio da Manhã' que estava abandonado em cima de uma mesa e comecei a lê-lo enquanto esperava pelo almoço. Café tomado e a conta paga, agarrei distraidamente no jornal e dirigi-me para a saída e qual não foi o meu espanto quando o dono do restaurante me interpelou para, caso não me importasse, devolver o jornal, pois o mesmo pertencia ao estabelecimento. Desfiz-me em desculpas, insisti que tinha sido uma distracção, um comportamento não intencional, desculpas que foram de imediato aceites pelo senhor em questão, que nem pareceu estar zangado. Reparei que toda a gente estava a olhar para mim, alguns ostensivamente, outros pelo canto do olho, e sai tão envergonhado que jurei nunca mais lá pôr os pés. Não critico os comensais, pois caso observasse noutra pessoa uma atitude semelhante à minha, dificilmente acreditaria numa desculpa assim. Por mais estranho que este pífio comportamento tenha sido, senti-me constrangido como um rapazola apanhado a roubar um chupa-chupa. Decidi não voltar mais àquele restaurante, pelo menos enquanto o dono se lembrar da minha cara. E o mais irónico em tudo isto é que, por causa de um jornal que custa pouco mais de 1 euro, o restaurante acabou por perder um cliente que, cada vez que lá ia, gastava no mínimo 10 euros em lautas refeições. Desta vez o marketing não funcionou.  

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